sexta-feira, 29 de janeiro de 2010


A cobra fumou... em solo brasileiro!
por Maria Leônia Chaves de Resende


“Eu os levei para o sacrifício:
cabia-me trazê-los de volta
para receberem as honras
e glórias de todos os brasileiros”.
Marechal Mascarenhas de Moraes

Na noite de 30 de junho de 1944, Getúlio Vargas compareceu a bordo do “General Mann” para se despedir, em nome do governo e da nação, dos soldados que seguiam para a Segunda Guerra Mundial. Ali mesmo fez suas promessas de amparar os combatentes e suas famílias. Um ano depois, o navio americano Meighs, ladeado por embarcações brasileiras e por salvas de tiros, entrava triunfante na baía da Guanabara, conduzindo os vitoriosos pracinhas do “front” para casa.

Tão logo desembarcaram no Rio de Janeiro foram recebidos com efusivas homenagens. Chuvas de confete caíam dos edifícios, enquanto bandeiras se agitavam, acenando aos ex-combatentes. À altura do Teatro Municipal, um pórtico estampava em verde e amarelo: “Bem-vindos à Pátria, Heróis!”. A multidão, tomada pela euforia, se acotovelava na Av. Rodrigues Alves, Rio Branco até a Candelária. Os pracinhas desfilavam altivos, exibindo as vitórias nos campos de batalha da Itália: Collecchio, Fornovo, Monte Castelo, Montese entre tantas outras.

Na região de São João del-Rei, de onde partiram tropas do 11RI, as comemorações não foram menos festivas, com o arroubo do povo entusiasmado pelo regresso de seus conterrâneos. Nas casas, ostentavam orgulhosamente um cartaz: “Daqui saiu um expedicionário!”. Mas, se os pracinhas, emocionados com a calorosa recepção, imaginavam que os dias penosos ficariam esquecidos em uma vaga lembrança, logo se deram conta do engano. Aqui mesmo, em solo brasileiro, outra guerra começava – a luta pela sobrevivência. Neste combate, esteve meu pai, Francisco Pedro de Resende, que me revelou, numa conversa emocionada, o “terrível sacrifício” que enfrentou no pós-guerra. Esse pequeno texto é um emblema daquilo que aconteceu com parte dos pracinhas, mas é, sobretudo, um registro do quanto aqueles momentos difíceis na vida de meu pai devem ser rememorados e celebrados como mais um sinal de sua fortaleza de espírito. E esse é seguramente o seu maior feito!

Tão logo se anunciou o fim da guerra, em maio de 1945, um aviso, expedido pelo Ministério da Guerra, determinava a dissolução da Força Expedicionária Brasileira ainda na Itália. A ordem era clara: à medida que as tropas desembarcassem no Brasil, os ex-combatentes seriam desincorporados das forças armadas, retornando às atividades em tempo de paz. Tal medida significava, na prática, a completa desmobilização da FEB. Assim, após a euforia da chegada, os febianos, então desvinculados do exército, receberam uma passagem para retornar as suas cidades de origem, cada um ao seu modo. Decorridos poucos dias, estavam abandonados à própria sorte. Logo compreenderam que as promessas de Vargas de amparar os pracinhas se calaram na imemorável noite de inverno de 44. E o teatro de operações recomeçava – dessa vez, no Brasil, onde outros momentos de privação e de dificuldades estavam reservados em um novo campo de batalha: na terra natal!

Como tantos outros, meu pai foi logo licenciado, passando a engrossar as fileiras de desempregados do País. A situação se agravou ainda mais porque, sendo de origem rural, pouco lhe restou. Assim, acabou se ocupando de pequenos negócios, entre outros biscates. Somente muitos anos depois, durante o governo de João Goulart, foi “aproveitado” no correio, onde trabalhou por “12 anos como carteiro e nos guichês”.

Outras lembranças lhe são ainda mais amargas. A mais tocante, certamente, foi o alto preço que pagou pela tão almejada reforma - a garantia de um soldo proporcional à patente. É o que transparece no seu desconcertante depoimento em que ele se recorda, com consternação, do fato de ter conseguido a reforma somente após “baixar no pavilhão” do Hospital Central do Exército do Rio de Janeiro. Conforme dispunha a lei, esse benefício destinava-se àqueles que tivessem alguma limitação por motivos de saúde. Por isso, tal vantagem dependia de uma perícia feita no HCE. Não é difícil imaginar o que ocorreu... Boa parte dos expedicionários, completamente desamparados e em total penúria, se sujeitou a uma “internação voluntária” nas enfermarias. Meu pai foi um dos pioneiros a encarar tamanho desafio, motivado pela “grande necessidade de assegurar o sustento de nossa família”. Mesmo sem sequelas psicológicas – a conhecida “neurose de guerra” -, apresentou-se no HCE em meados de 1976. Em poucos dias, estabeleceu um bom relacionamento com o enfermeiro Sarg. Paulo Gomes, responsável pelo pavilhão, ocupando-se dos serviços gerais e limpeza do pavilhão. Com o convívio e certamente condoído pela situação, o sargento acabou se tornando um “grande amigo”, dando-lhe “apoio moral” e “orientando nos melhores caminhos” para lidar com a junta médica. A visível decadência física e emocional, imposta pelas dificuldades de reintegração no pós-guerra – ainda mais agravada pela distância da família - certamente, reforçou seu abatimento. Lá permaneceu por longos 4 meses, na primeira internação, e mais 17 dias, na segunda.

Enquanto isso, minha mãe, professora primária, se incumbia da responsabilidade de cuidar dos onze filhos. Em consequência das dificuldades de comunicação da época, não tinham como manter contato frequente. “Tempos de insegurança”, pois ela sequer sabia “quando e como [ele] voltaria para casa”. Eu mesma ainda guardo da infância o seu semblante extenuado, coberto por uma longa barba, sempre justificado “por estar em tratamento de saúde”. Não é preciso dizer o quanto aqueles dias foram marcantes para todos nós!

Apesar da morosidade e dos entraves burocráticos, a reforma foi aprovada e publicada, finalmente, no Diário Oficial em novembro de 1976. Seja como for, não fosse a coragem para enfrentar tamanho desafio, meu pai – entre tantos outros veteranos - sequer teria conquistado algum reconhecimento até a Constituição de 1988 – quando, enfim, transcorrido quase meio século, foi assegurada uma pensão especial aos ex-combatentes.

Em homenagem aos seus feitos na juventude, ainda estampo, com orgulho, na parede de minha casa, uma carta emoldurada, escrita por ele no dia 16 de maio de 1945, noticiando o término da guerra, enquanto aguardava com expectativa o embarque para o “Brasil amado, cobertos de louros da vitória que nos custou inúmeros sacrifícios”. Durante todos esses anos, cada vez que eu a relia, era tomada por um sentimento de indignação – na condição de filha e de historiadora - e me perguntava quando ele teria o reconhecimento pelos sacrifícios que enfrentou também em solo brasileiro. Afinal, esses relatos, lamentáveis e vergonhosos, não se encontram registrados nos compêndios sobre a Segunda Guerra Mundial. Vieram à tona – certamente não sem dor e amargura - através do seu desabafo. Resistindo a esse descaso, ainda assim encontrou ânimo para tocar nessas “feridas” pacientemente – como é de seu temperamento (ou do que a vida lhe exigiu) – reforçando o valor e a fortaleza dos pracinhas. Cabe à nação, passar a limpo essas páginas e registrar nos anais de nossa História os feitos desses homens, na guerra e no pós-guerra, na Itália e no Brasil - lugar condigno e que, por justiça, todos eles devem ocupar. Para o meu pai esse dia finalmente chegou...

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